Um retrato do abandono do ensino público no Brasil. São escolas sem água
potável, sem banheiro e até sem sala de aula. Durante dois meses, os
repórteres Eduardo Faustini e Luiz Cláudio Azevedo percorreram escolas
públicas dos estados que tiveram as médias mais baixas no Programa de
Avaliação Internacional de Estudantes (Pisa). “O percurso deles é em
torno de 20, 30 quilômetros. Muitos acordam duas, três horas da manhã,
para pegar um caminhão, para que esse caminhão leve até a rodovia, para
da rodovia vir de um transporte fornecido pela prefeitura do município: o
ônibus escolar”, conta um morador de Joaquim Gomes, em Alagoas. “A rua é
assim desse jeito. Os meninos, a gente atravessa eles no braço, porque
não quer ver eles molhado. Caderno, eles não dão”, conta uma moradora de
Jaboatão dos Guararapes, em Pernambuco.
Leia também Brasil fecha, em média, oito escolas por dia na região rural
“Essa água não é ideal para ser tomada e, principalmente dar ela para as
crianças. Isso aí tem um germe total. Eu trabalho aqui, mas dela eu
também não bebo”, revela um homem. “Tem aluno que até cai da carteira,
principalmente os menores, da educação infantil”, diz uma moradora de
Codó, no Maranhão.
“Quando temos a necessidade de irmos para o
banheiro, nós vamos para o mato. Os alunos e a professora”, afirma uma
mulher. O que a reportagem mostra são escolas em que falta tudo, escolas
que nem de longe lembram uma escola. O que não falta é a força de
vontade de alunos, professores e pais que sofrem com as péssimas
condições de ensino. Sofrem e ficam indignados. “Ei, quatro anos sem
receber farda, aqui, ó”, conta uma mãe. “Sem receber farda, sem ninguém
dar atenção para gente”, afirma uma outra mãe. “As crianças da gente são
desprezada aqui dentro”, reclama. O Fantástico mostra a situação da
entrada de uma escola municipal, em Jaboatão dos Guararapes, em
Pernambuco. “Quando chove, a água invade, e chegam molhados, tudo sujo.
Aí a situação. Aí não tem. Um bebedor bom não tem. Papel higiênico não
tem”, afirma a mãe de aluno Maria Betânia dos Santos. Revoltada, ela diz
que as professoras pedem aos pais até material de limpeza: “Elas pedem à
gente uma vassoura, pedem detergente. É o que for para botar aqui. Para
ajudar aqui. E tem vez que as pobrezinhas passam quase um mês sem
receber. Aí como é isso?”. Isso é a realidade de escolas públicas em
Alagoas, em Pernambuco e no Maranhão. Na mais recente pesquisa
brasileira do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa),
esses estados estão entre os que tiveram as notas médias mais baixas. Os
repórteres do Fantástico passaram dois meses registrando as condições
de escolas nesses estados.
Fantástico: Que horas você sai de casa?
Williana Soares (aluna): Quatro horas.
Everton Guedes Cavalcante (aluno): A hora que eu saio de casa, o
máximo é 4h10, mas me acordo 3h50. Só tem um jeito para o Everton e para
a Williana irem à escola: de caminhão. “Tem uma base de uns 55 alunos
que nós vai (sic) nesse caminhão. Só que tem a dificuldade da estrada”,
explica o motorista José Fernandes de Melo. É uma estrada de terra.
Depois dessa viagem, em Joaquim Gomes, em Alagoas, é que eles pegam o
ônibus escolar da prefeitura. Mas e quando chove? “Com dia de sol, nós
consegue (sic). Quando choveu, não consegue chegar aqui”, conta o
motorista. O jeito então é ir... “Andando. Fora a ladeira que tem para
subir”, conta Williana. Ou então... “É ficar em casa mesmo, sem poder ir
para a escola”, admite Everton. Já em Lagoa Grande, em Pernambuco, quem
não tem caminhão vai de charrete. Seu Francisco diz que a filha, a
Rosileide, se queixa quando a escola não pode funcionar. Em Codó, no
Maranhão, o André e o primo dele, o Eduardo, são vaqueiros de manhã. De
tarde, caminham 35 minutos até a escola. Por lá, falta quase tudo. Não
falta carinho. “Vocês são guardado no lado esquerdo do meu coração.
Então, sejam bem-vindos mais este ano que nós temos aqui para trabalhar,
para melhorar, para ver os nossos acertos”, anuncia a professora. Em
Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco, se chegar a uma escola assim não é
fácil, entrar também pode ser bem difícil, como foi visto no início da
reportagem. Na frente de outro colégio da mesma cidade, a situação é
pior ainda: o esgoto está aberto. E ainda uma terceira escola enfrenta o
mesmo problema, no mesmo município. “Está há seis anos assim. Agora, é o
que a gente diz para as mães: nós como funcionários vamos entrar. Nós
somos funcionários, precisamos preservar a escola aberta para o aluno”,
diz a secretária escolar Maria Vieira de Araújo.
Fantástico: Como que a senhora chegou hoje para dar aula? Qual foi a situação que a senhora encontrou na sala de aula?
Auriele Galvão (professora): A escola toda estava alagada. Não é
goteira, é chuva mesmo. Eu afasto todas as cadeiras, boto todo mundo pro
canto, e coloca baldes aqui. A água desce todinha pela parede.
Inclusive eu já perdi trabalhos que a gente realiza trabalhos com os
alunos, coloca nas paredes em exposição, mas aí desce tudo, molha tudo.
Você pode pensar que é uma cidade muito longe dos grandes centros, mas
não é: Jaboatão dos Guararapes fica a cerca de seis quilômetros do metro
quadrado mais caro de Recife, na praia de Boa Viagem. Finalmente, a
aula começa, inclusive na escola indígena Pajé Miguel Selestino da
Silva, em Palmeira dos Índios, em Alagoas. O que falta é a própria sala
de aula.
Fantástico: Há quantos anos o senhor dá aula nessa situação aqui?
Jecinaldo Xucuru Cariri (professor): Há mais de dois anos que eu
venho ministrando aula debaixo da mangueira. É bastante complicado, até
porque de repente vem uma chuva, então tem que todo mundo correr e
abandonar a aula. Em uma galpão, funciona outra sala. É uma situação de
improviso, porque a sede original da escola não tem mais condições de
uso e está interditada. No galpão, os alunos ficam espremidos. Além do
desconforto, tem o perigo. A escola municipal em Codó, no Maranhão, se
chama Divina Providência e espera providências há muito tempo.
Fantástico: Há quanto tempo essa escola está assim? Do jeito que está assim hoje.
Deusdet Oliveira Matos (comerciante): Está com mais de 15 anos. O
Deusdet é um comerciante que construiu a escola há 50 anos e, do jeito
que pode, continua tomando conta dela.
Deusdet Oliveira Matos: Quando está gotejando, eu vou, tiro a goteira. Agora, esse ano eu ia fazer essa parede de tijolo, mas ainda não fiz.
Fantástico: O que leva o senhor a cuidar dessa escola?
Deusdet Oliveira Matos: O espírito de humanidade, para poder
auxiliar os filhos dos moradores a não se criarem analfabeto. “A
situação, como vocês estão vendo, desde o ano passado que a gente está
desse jeito. A falta de cadeira, sentam e não tem o braço da cadeira.
Eles estão com dificuldade para escrever. E eu estou utilizando a minha
mesa, para que eles fiquem mais à vontade. O que eu posso fazer eu estou
fazendo”, diz Juciara de Souza, professora em Petrolina, Pernambuco. Em
uma das cadeiras é possível ver parafuso para fora. “Eu gostaria que
tivesse cadeiras boas e que não fossem quebradas”, afirma uma aluna. “Já
teve caso de criança perder aula, porque não tinha cadeira”, conta a
mãe de aluno Edineide Helena da Costa. “O piso da escola não é adequado
para o tipo de carteira, porque as carteiras, como é você pode ver, é um
cano. Então, elas afundam no chão. E aí tem aluno que até cai. Aí
chora, devido ao chão batido, que aqui não sabe se aqui é uma subida, ou
ali é uma descida. É um desnível total. Porque aqui era uma casa de
moradia. Era uma pessoa que morava aqui. Aí montou essa escola aqui para
eles”, conta Rosa Maria Pereira Cunha, professora em Codó, no Maranhão.
As escolas visitadas pelo repórter Eduardo Faustini ficam em regiões
bem quentes. Nas salas, todo mundo se queixa do calor. “É quente. No
calor não tem quem suporte”, reclama a aluna Mayara Nunes de Alencar, em
Petrolina, Pernambuco. “Tem um ventilador, mas na outra sala. Um
ventilador não é suficiente para os aluno. É muito aluno”, diz a
zeladora Josiane Barbosa da Silva, de Lagoa Grande, Pernambuco. Em
outras escolas, um, dois ou um monte de ventiladores, nada resolveria,
porque elas não têm energia elétrica.
Rosa Maria Pereira Cunha (professora em Codó, no Maranhão):Quando chove, fica escuro.
Fantástico: Não tem luz.
Rosa Maria Pereira Cunha: Tem não. Não tem luz. Como beber água
nessas condições? E como fazer a merenda? “Para beber água, a gente pega
água com a dona da terra. Pega uma garrafa de água e trago para cá,
porque também está faltando filtro”, conta a professora Eliete de Araújo
Lobes. “Eu trabalho aqui, mas dela eu também não bebo, porque a gente
vê a situação da água. Isso aí tem um germe total. Até lá em cima tem um
pisador de cavalo e um pisador de boi. Tem uns bois que ficam aí atrás
que bebem dessa água aí em cima da barragem”, José Dionísio Justino,
professor em Joaquim Gomes, em Alagoas.
Celso Selestino (agente de saneamento em Palmeira dos Índios, em Alagoas): Não tem tratamento. Do jeito que ela passa aqui, ela abastece a cidade e não tem tratamento nenhum.
Fantástico: Agora tem algum sistema de filtro para proteger essa água?
Celso Selestino: Não. O filtro que tem aqui só isso aqui, não tem
filtro nenhum. O pessoal é que coa a água ali e dá para as criança
beber. “A fossa é dentro da cozinha, e o suspiro é dentro da cozinha.
Aonde a merenda já chega pronta e a gente tem que servir a merenda neste
setor”, revela um funcionário de Jaboatão dos Guararapes, Pernambuco.
“Geralmente a merenda só aparece de maio a junho. Geralmente é nesse
período que a merenda aparece”, diz uma funcionária de uma escola na
cidade de Codó, no Maranhão. “Custa a chegar. E quando vem, a gente se
junta lá com a vizinha aqui, que me ajuda demais, e aí a gente faz a
merenda para essas criança. E, quando não, eles comem fruta da estação.
Desse jeito”, conta a professora Maria do Amparo dos Anjos.
Professora de Lagoa Grande, em Pernambuco: Às vezes não tem aula porque não tem a merenda.
Fantástico: Difícil, não é?
Professora: É complicado.
Fantástico: Como é que você se sente, assim, cuidando dessas crianças nessa situação?
Professora: Assim, eu me sinto... pequena, né? Que seus alunos
não tá crescendo. Você sente como se tivesse diminuindo, não tá
aumentando. E aí, se o aluno tem o que comer e faz sua refeição, é hora
de escovar os dentes. Mas em que banheiro? “A água que a gente tem para
botar nas descargas. Ontem, quem fez a limpeza fomos nós, os
professores. Ó, aqui não tem a torneira”, denuncia a professora
Marilucia Gomes de Sá, professora em Petrolina, Pernambuco. “O ano
passado eles estudaram sem banheiro, não tinha banheiro”, conta
Francisco da Silva, pai de um aluno em Lagoa Grande, Pernambuco.
Josiane Barbosa (zeladora em Lagoa Grande, Pernambuco): Ó, tem esse banheiro aqui. Não tem luz, todo esculhambado. Tão fazendo um ali fora, mas começaram e não terminaram ainda.
Fantástico: A descarga funciona?
Josiane Barbosa: Não.
Fantástico: Como é que faz o aluno quando precisa ir ao banheiro?
Funcionária: Os meninos vão para detrás da escola, e as meninas, do outro lado, assim como a professora também. Que nós não temos banheiro.
Fantástico: A senhora usa o mato quando...
Funcionária: Também. Fim das aulas, hora de voltar para casa.
Lama, viagem longa e perigosa, em mais um dia do ano letivo. Essas
escolas passam por inúmeras dificuldades. Para muitos professores, a
situação é mais difícil ainda, porque eles têm que dar aulas para várias
turmas ao mesmo tempo. É o chamado ensino multisseriado, bastante comum
no Brasil.
Fantástico: Enquanto a senhora está dando aula para uma turma, a outra aguarda, é assim que é feito?
Professora: É. Sempre eu começo pela educação infantil, já tá
aprendendo a coordenação motora. Eu passo primeiro. Aí vou para o outro
que já está lá no quarto, quinto ano. Algumas das escolas mostradas na
reportagem oferecem aos alunos menos do que o mínimo do mínimo. Uma
escola com infraestrutura elementar tem que ter água, banheiro, esgoto,
energia elétrica e cozinha. Quase metade das escolas brasileiras é
assim. São 87 mil ou 44,5% do total de escolas no país, segundo estudo
feito por pesquisadores da Universidade de Brasília e da Federal de
Santa Catarina. “Escolas com estrutura precária em geral são escolas
municipais e muitas dessas escolas são rurais. Se nós pegarmos escolas
que atendem alunos com um nível socioeconômico equivalente, as que têm
melhor estrutura tendem a oferecer melhor resultado”, diz José Joaquim
Soares Neto, pesquisador da UnB. A escola com a infraestrutura adequada
tem sala dos professores, biblioteca, laboratório de informática, quadra
esportiva e parque infantil. Conta também com acesso à internet e
máquina de cópias. E a escola com infraestrutura avançada tem tudo isso e
ainda laboratório de ciências e instalações para estudantes com
necessidades especiais. Das 195 mil escolas brasileiras, pouco mais de
mil são avançadas. Isso representa 0.6% do total. “Em geral, essas
escolas estão em regiões como Sul e Sudeste”, completa o pesquisador.
Diante disso tudo, o que é que leva todos esses brasileiros, alunos,
professores e também os pais, a seguir em frente? O professor Elias
Ferreira da Silva passou por algumas dessas situações que você acabou de
ver, chegou à universidade e hoje dá aula na Escola São José, em
Alagoas, aquela dos alunos que precisam do caminhão para ir à aula. “É
justamente essa vontade que eles têm de um futuro melhor que fazem ele
ter essa força de sair 30 quilômetros, 20 quilômetros, 15 quilômetros,
para chegar até a escola”, destaca Elias Ferreira da Silva. “Ano
passado, quando cheguei aqui, estava tudo caído, aí eu me sentei e,
sinceramente, eu chorei”, revela uma professora. “Eu queria que ela
fosse grande, que tivesse vários professores, apesar que eu gosto de
todos os meus professores, eles me ensinam muito bem”, comenta uma
aluna. “Eu sempre digo isso, que eu acho que a gente que trabalha na
Zona Rural, nós somos realmente heroínas”, afirma uma mulher. “Apesar
desses lugares mais longínquos possível, vocês são o futuro dessa nação,
construindo a sua própria história, ajudando a erguer mais esse país
tão grande”, afirma uma professora. A Prefeitura de Codó, no Maranhão,
diz em nota que vem melhorando a infraestrutura das escolas rurais.
Afirma que, nos últimos cinco anos, foram construídas e equipadas 150
novas salas de aula. E que está prevista a construção de mais 28 escolas
nos próximos 2 anos.
Veja o que os outros órgãos públicos têm a dizer:
A prefeitura de Jaboatão dos Guararapes informou na sexta-feira (7) que o
trabalho de recuperação está em andamento. “Já recuperamos 51 escolas e
temos um cronograma de execução até o final do ano. As três escolas
visitadas, desde a produção das imagens até o presente o momento, já
resolvemos mais de 90% do que vocês filmaram”, afirma secretário de
Educação de Guararapes, Francisco Amorim. A Secretaria de Educação de
Joaquim Gomes, em Alagoas, informa que tem projetos junto ao Ministério
da Educação para obter recursos federais para recuperar escolas rurais e
também urbanas. Novas cadeiras já estão sendo compradas e reparos estão
sendo feitos nas escolas. O secretário de Educação de Lagoa Grande, em
Pernambuco, diz que o município está trabalhando na recuperação das
escolas em regime de urgência. “Encontramos o município totalmente
sucateado. Fizemos um levantamento emergencial onde a gente poderia
intervir de imediato”, afirma o secretário de Educação de Lagoa Grande,
Daniel Torre. A Secretaria de Educação de Alagoas afirma que a ordem de
serviço para recuperação da Escola Estadual Pajé Miguel Selestino já foi
assinada. Serão instalados um laboratório de informática e uma
biblioteca. As cadeiras da escola Joaquim Francisco da Costa, em
Petrolina, Pernambuco, foram substituídas cinco dias depois de o
Fantástico visitar a escola.
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