29 de novembro de 2013

Berlusconi e Maluf, tudo a ver?

Phillipe Ridet, há seis anos correspondente do 'Monde' na Itália, não se entusiasmou lá muito com a cassação do mandato de senador de Silvio Berlusconi, o até agora inoxidável líder da direita italiana. Para Ridet, 'o problema não era tanto Berlusconi em si quanto quem continuou a votar por ele', não obstante a catarata de processos a que responde na Justiça, um dos quais - por fraude fiscal - levou a uma condenação definitiva e, por isso, à perda do mandato.

A observação do jornalista francês é correta. Afinal, Berlusconi não é produto de um golpe de Estado, da imposição de poderes externos, de uma conspiração sombria. É o resultado do voto livre de uma ponderável fatia de italianos, em um país de invejável teor de democracia.

Por que votar em um homem tão complicado? A resposta exigiria uma investigação profunda que escapa ao imediatismo do jornalismo. Mas há uma disponível no mercado de análises, recolhida por Mads Frese, do 'Information' da Dinamarca.

Frese ouviu um dos raros intelectuais italianos que não é virulentamente anti-Berlusconi. Chama-se Giovanni Orsina, professor de História Contemporânea e autor do livro 'O berlusconismo na História da Itália'.

Diz Orsina: 'A especificidade histórica da Itália se caracteriza por aspectos bem mais negativos que positivos: graves ineficiências das instituições, processos de deslegitimação recíprocos [da direita para a esquerda e vice-versa], desconfiança profunda do Estado em relação aos cidadãos e vice-versa. O berlusconismo representa tanto um produto de tais características como uma tentativa de superá-las. Tentativa fracassada'.

Eu acrescentaria que Berlusconi é também o produto da busca por homens providenciais, de que a Itália não detém o monopólio, aliás.
O ex-presidente do Conselho de Ministros surge em outro momento, como o atual, de desprestígio imenso das instituições italianas, corroídas pela corrupção e, agora, pela crise.

O raciocínio implícito do eleitorado berlusconiano era mais ou menos assim: se ele fora capaz de se tornar uma história de sucesso empresarial, independentemente dos métodos de que se valeu para tanto, seria capaz de fazer também do país uma história de sucesso.

Daria para adaptar ao Brasil e à história de Paulo Maluf a análise de Orsina para Berlusconi? Talvez. O fato é que Maluf é uma espécie de Berlusconi tropical, com sua fieira de processos judiciais e de sucessos eleitorais, com a única diferença de que jamais foi condenado em definitivo como também jamais chegou à chefia do governo central.

Lembro-me até hoje de uma aula rápida de malufismo dada por um leitor da Folha muitos anos atrás. Eu havia feito uma crítica aos gastos exagerados para a construção da avenida Água Espraiada, rebatizada para Jornalista Roberto Marinho. Mal o jornal começara a circular, toca o telefone e um leitor que logo se identifica como malufista despeja sua ira contra a crítica.

'Como é que você critica uma obra tão importante? A avenida não está lá? O que você queria, que ela não fosse feita?', pergunta, indignado, o interlocutor.

Tento responder que queria, sim, que a obra fosse feita desde que o custo não excedesse o do túnel sob o canal da Mancha, como à época se noticiou. Não consigo vencer a indignação do leitor que acaba decretando: 'Ah, vocês jornalistas são todos petistas' (estamos falando de um tempo em que petismo e malufismo pareciam ser incompatíveis).

Retruco: 'Só falta dizer que somos também todos bichas'.

E o leitor fecha o educativo papo com: 'Quer saber? São mesmo'.

Quero acreditar que nem todo malufista tem uma cabeça como essa, mas que o diálogo é uma enciclopédia sobre a razão de votos em personagens como Maluf e Berlusconi, lá isso é.

Com uma vantagem para Maluf: tem obras, discutíveis ou não, ao contrário do político italiano, até porque este encontrou um país pronto e acabado com um padrão de vida invejável e cidades 'imexíveis' pelo acervo histórico que contêm.

A questão agora é saber se Berlusconi, privado do mandato por seis anos, vai minguar como Maluf foi minguando depois que mandou votar em Celso Pitta, acrescentando que, se Pitta fracassasse, ninguém deveria votar no seu padrinho.

Berlusconi não deixa herdeiros, mas a especificidade histórica da Itália, desenhada por Orsina, continua de pé.

Clóvis Rossi
Folha de S.Paulo.

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