Passar os olhos na obra é fazer uma deliciosa incursão ao saudoso sertão do meu tempo de garoto.
Porque,
no texto romanceado de Maciel vão surgindo personagens pinçados na sua
Iguaracy, vizinha a minha Afogados da Ingazeira, no Pajeú, que povoaram a
minha infância e adolescência.
Pedro
Maraváia, que era o xodó de Maciel, é retratado por ele como lindo,
bacana, barba grande. Mas suja, quase marrom. Um paletó velho, desbotado
e também sujo, que seu Arnóbio lhe deu antes de morrer.
Calça
cáqui com dois remendos nas pernas. A voz era sempre rouca e balbuciava
coisas completamente sem nexo, uma conversa sem pé nem cabeça.
O
poeta-cantor e agora escritor de fina escrita cita dois outros
doidinhos, também familiares a este blogueiro, porque Iguaracy e
Afogados da Ingazeira são cidades irmãs: Toinho Doido e João Doido.
Dos
três, o mais valente, homenageado no livro, era Pedro Maraváia. Eu
mesmo não conto às vezes que, imberbe, corri com medo das pedras que ele
atirava quando provocado.
O
livro é prazeroso e belo, como as músicas de Maciel, porque tem poesia.
Maciel escreveu como se tivesse compondo uma melodia. E com o seu
talento leva o leitor não sertanejo a mergulhar num mundo de poetas e
sonhadores, como ele próprio, o “Caboclo sonhador”, seu maior sucesso
musical.
Rico
em citações e reproduções do mundo vasto da nossa literatura, Maciel
recorre a Zé de Cazuza, por exemplo, para ilustrar a definição de um
louco quando aborda sua admiração por Pedro Maraváia.
“Doido não possui maletaTambém não possui bagagemEnfrenta qualquer viagemCom roupa branca ou pretaNão tem dinheiro em gavetaSe tem não presta atençãoSe possuísse um milhãoTrocava por um cruzadoO louco é afortunadoPorque não tem ambição.”
Com
a sua pena mágica, Maciel retrata a hora mais sagrada para nós,
sertanejos, às seis da noite, quando o matuto se recolhe para fazer suas
meditações ouvindo na rádio Luiz Gonzaga cantar Ave Maria Sertaneja:
“Os
pássaros se recolhem em seus galhos, os animais voltam para os currais,
os porcos fazem suas últimas algazarras nos chiqueiros e as aves todas
se aninham em seus poleiros.
Na calçada, um senhor lava os pés numa
bacia. As janelas começam a se iluminar com a luz dos candeeiros. Os
vaga-lumes pisca-piscam no quintal, enquanto a chaleira chia num fogão
de lenha bem velhinho, construído pelo seu avô.”
E acrescenta: “A
parede enfumaçada pela tisne das trempes mostra o cenário real da sua
gente. A lenha de angico, encostada no cantinho da despensa, retrata a
simplicidade de sua existência.
O
aroma do café torrado no caco se espalha pelos cantos da casa, e o
cheiro de pasto ruminado caracteriza o estilo e a realeza da vida desse
povo”.
Maciel fala de pai e mãe. Heleno Louro, o pai, um negro lindo de feição singela, segundo a sua narração.
Tocador de sanfona, que veio da divisa do Pajeú com a Paraíba, de São Vicente, de um povoado conhecido como “As Cangalhas”.
A sua mãe, dona Maria de Lourdes, que vendia roupas nas feiras do Sertão, fez uma das canções de maior sucesso do seu vasto repertório: Rainha.
“Oh! Maria de Lourdes da LabutaEm Sumé foste doce, amarga e belaParaíba foi tua passarelaPernambuco te trouxe sedução.O destino entregou sua missãoOnze itens a ti foram destinadosE a lei que constitui o teu reinadoFoi escrita com a tinha do perdão.”
Com
a sua tinta, Maciel cita muitos poetas: Lourival Batista, Ivanildo
Vilanova, Diomedes Mariano, este de memória privilegiada, tendo ajudado a
citar vários versos de trovadores, Zé Marcolino, o monstro sagrado Pinto do Monteiro, que assim descreveu o que é ser um poeta:
“Poeta é aquele que tira de onde não tem,Pra botar onde não cabe”.
Mas
o grande homenageado de Maciel é Zeto, aquele poetinha do Pajeú que fez
os versos da campanha de Arraes em 1986, quando foi eleito sobre o
embalo da sua volta do exílio dizendo que entraria pela mesma porta que
saiu.
Zeto
– diz Maciel – não tingia seus versos de cores frias. Suas cores eram
quentes como o sol do Sertão. Foi beber na fonte e por lá ficou até o
último gole. Criou raízes, fez da poesia seus aposentos.
Dormiu no colo de Louro como se fosse filho, beijou a face de Jó como
se fosse sobrinho, viveu no Pajeú como se fosse o próprio rio e
mergulhou nas águas da existência humana até afogar-se na embriaguez de
seus poemas.
A
liberdade era a sua fonte de inspiração, e o improviso acelerava seu
metabolismo. Metrificou as sílabas da palavra que rimava solidão e dor.
Cantou
as maravilhas de um sertão cheio de encantamentos. Viveu a vida com a
viola em punho, afinou seu canto ouvindo desafios e declamou segredos de
amores vis.
E encerra, assim, brilhantemente:
“Zeto,
glamoroso Zeto! Tu foste um ensaio de Manuel Bandeira, no palco ilustre
de Florbela Espanca, e do espelho do retrovisor de Alberto da Cunha
Melo viste um cantador temperando a goela, para cantar um mote de
Severina Branca”.
Quem
é sertanejo, como este blogueiro, marajeia os olhos com a veia poética
de Maciel. Que cita muitos poetas retratando o sertão, como João
Paraibano neste verso imortal:
“Eu nasci e me crieiNum pé de serra esquisitoA geladeira era um poteO Guarda-roupa um cambitoO transporte era um jumentoE o telefone era um grito”.
Pois
é! O Sertão que Maciel viveu eu também vivi. Lá, como ele retrata em
sua obra, antes de rádio e os discos chegarem, os batizados ,
casamentos, festas de padroeiro e
outros eventos eram animados por sanfoneiros, cantadores de viola,
tiradores de coco (ou coquistas), bandas de pífanos e rabequeiros.
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